sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A privatização do apoio à Cultura

Naquele ano, 1922, toda a classe artística brasileira, e em particular a do Rio de Janeiro, estava esperançosa e radiante. Afinal, a Lei Renaud estava em pleno vigor e aquela original idéia da chamada "renúncia fiscal" dava maior credibilidade ao governo Epitácio Pessoa. Era o ano do primeiro centenário de nossa independência e esta, finalmente, começava a sorrir para os artistas brasileiros.

As mais importantes empresas brasileiras recebiam projetos e mais projetos que, com base na Lei do Mecenato, atraíam a atenção e o interesse dos empresários. As empresas que mais receberam projetos dos artistas foram a São Paulo Coffee, o Banco Nordeste, as Lâmpadas Edison-Mazda, a Vanadiol ("o grande fortificante!"), a Antarctica ("os grandes productos do mercado: cervejas – licores") e a Companhia Fiat-Lux.

A reunião da diretoria da Fiat-Lux, naquela agitada noite de 22 de julho de 1922, iria ser muito inflamada. Apenas três projetos culturais haviam sido apresentados à empresa, mas a discussão era acalorada. Um filme, uma viagem de concertos eruditos e uma viagem de um conjunto de música popular eram os projetos a serem analisados. Seus autores eram Benedetti, Villa-Lobos e um tal de Pixinguinha, jovem de 24 anos de idade que havia criado um conjunto de nome "Os Oito Batutas".

O Dr. Pullen, apaixonado por cinema, puxava a brasa para a sardinha do projeto do tal Paulo Benedetti: um filme intitulado "A Gigolete". O roteiro até que era bem medíocre. Mas o autor do projeto incluía no elenco, com um expressivo papel, o famoso ator Jaime Costa.

Mas outro membro da diretoria, o Dr. Davidson, estava intransigente. Ia ser difícil demovê-lo do propósito de dar toda a verba para o projeto do compositor Villa-Lobos: uma viagem a Paris, para difundir a nova música brasileira. Os argumentos do Dr. Davidson eram contundentes. "– Este doido, o Villa-Lobos, faz uma música que ninguém entende hoje porque ele é um gênio!" – vociferou o Dr. Davidson.

"– Mas ele foi vaiado recentemente, lá em São Paulo, naquela tal Semana de Arte Moderna! Você não se lembra?" – gritou o Dr. Pullen, completando: " – Este desgraçado faz parte da turma do Graça Aranha, o calhorda subversivo!"

Mas tudo indicava que o flautista Pixinguinha e o Paulo Benedetti seriam prejudicados. Dr. Davidson foi categórico:

" – Somente uns gatos pingados gostam das músicas malucas deste tal Villa-Lobos. Seus concertos estão sempre vazios, mesmo com entrada franca. Mas este jovem, que agora está com 35 anos, daqui há 70 anos poderá ser considerado o maior compositor brasileiro de todos os tempos, com renome maior que o de Carlos Gomes!"

As expressões faciais do Dr. Davidson eram fortes, marcantes. Ele franzia a testa e o pescoço inflava dando a impressão que ia fazer estourar o colarinho apertado. Prosseguia ele:

"– Devemos apoiar a música brasileira contemporânea, apesar de seus sons estranhos. O Heitor Villa-Lobos tem usado, nas suas obras para orquestra, um naipe avantajado de instrumentos de percussão. Coisa de doido. Lá na ABI, noutro dia, vi o maestro regendo uma barulheira infernal, em que os sons dos violinos eram apoquentados pelos barulhos de caxambus, chocalhos de lata, tambores africanos, ganzás, matracas, pios e cuícas. Até saxofones o doido descabelado coloca na orquestra. Não entendi nada, mas sinto que este músico precisa de apoio para que as gerações futuras obtenham o devido retorno".

"– Que irresponsabilidade!" – esbravejou o Dr. Pullen. "Queremos lucro, luuuuuuucro!" – completou. "Que negócio é este de gerações futuras?

"– Meu prezado! Pense bem! Somos capitalistas e imperialistas, mas a arte e a cultura estão acima de tudo! Investimento imaterial! É este o bom caminho! Nós devemos aproveitar a renúncia fiscal do governo para aplicarmos em cultura, mesmo sabendo que, apoiando malucos, não teremos nenhum retorno financeiro. Os malucos de hoje hão de ser os gênios consagrados de amanhã, que enriquecerão o acervo cultural daquela nação cujos cidadãos serão os nossos filhos e os nossos netos."

O Dr. Davidson não era o único, na reunião, a demonstrar preocupação com a arte de vanguarda, de pouco público. Mr. Martin e a assessora Margareth concordavam com ele:

– "Este projeto, Os Oito Batutas, não precisa de nosso apoio. Isto é música popular, que se sustenta sozinha. Tem público certo, pagante!" – opinou a Sra. Margareth.

Mr. Martin foi mais longe:

– "É isso mesmo! O argumento vale também para este projeto de filme: A Gigolete. Esta cambada do cinema só pensa em dinheiro. Querem ganhar altíssimos lucros, faturando com doações, patrocínios e bilheterias. Ainda têm a coragem de chamar isto de Sétima Arte! Vejam só! São industriais que se camuflam de artistas!"

Já estava na hora de votar. Realmente, só a música arrojada, de vanguarda, sem público, deveria ser apoiada. As opiniões afunilavam para este consenso. Música popular, cinema, literatura, artes plásticas, tudo isso tinha público certo, pagante, que podia sustentar a produção.

"– Veja como vendem o Calixto e o Batista da Costa! Dizem que até aquela moça de Capivari, a Tarsila, está vendendo seus quadros em Paris!" – exclamou Mr. Martin.

Unanimidade! O resultado da votação foi favorável ao projeto de Villa-Lobos. O empresariado, classe de cidadãos conscientes, esclarecidos, longânimes, que sempre condenaram a exploração e a injustiça social, faziam de tudo para ajudar os artistas inovadores.

O leitor acreditou nessa estória? — Pura invenção! Tudo falso!

É bem verdade que Villa-Lobos, em 1922, recebeu algumas dezenas de contos de réis para empreender uma viagem de concertos na Europa. Mas o grande mecenas foi o poder público.

No dia 22 de julho de 1922, graças a uma brilhante defesa do deputado Gilberto Amado, a Câmara dos Deputados aprovou uma subvenção de cento e oito contos a fim de que Villa-Lobos pudesse realizar concertos na Europa. Em 30 de junho de 1923 Villa-Lobos, a bordo do navio francês Croix, deixava o Rio de Janeiro com destino a Paris.

Sendo tudo pago com o dinheiro do povo brasileiro, em 3 de maio de 1924 Villa apresentou concerto com suas obras, para alguns gatos pingados, na salinha da Editora Max Eschig, em Paris. Mas os gatos pingados eram multiplicadores e formadores de opinião e deu no que deu. Novas portas começaram a se abrir para o gênio brasileiro, graças ao empurrão inicial do povo brasileiro, via poder público.

Mas a primeira viagem de concertos que Villa-Lobos faria a Paris, patrocinada pelo governo brasileiro, não podia deixar de ser precedida de uma bela e cerimoniosa despedida. Assim, o Presidente Epitácio Pessoa esteve presente ao concerto, em sua homenagem, que Villa regeu no Teatro Municipal do Rio em 11 de novembro de 1922. O presidente teve a paciência de ouvir oito obras do revolucionário promissor. Não se fazem mais presidentes como antigamente.

Em outubro e dezembro de 1927 a façanha brasileira se repetiu, com alguns concertos na Salle Gaveau. Essa nova estada de Villa-Lobos em Paris foi possível porque o deputado Carlos Guinle emprestou ao maestro o seu apartamento da Place Saint Michel nº 11. Era ali que Villa organizava, todo domingo, uma feijoada para ser deliciada por Edgar Varèse, Arthur Rubinstein, Vera Janakopoulos, Antonin Artaud, Luigi Russolo, Calder e vários figurões que lhe abriram espaços na Radio ORTF, na Salle Gaveau, na Orchestre Colonne, na Révue Musicale, etc.

Villa-Lobos – há de se concluir – é hoje um patrimônio nacional e internacional não apenas por sua genialidade, mas também porque o Estado brasileiro deu-lhe o apoio devido no momento certo. Esse momento foi longo, porque durou vários mandatos: Epitácio, Bernardes, Washington Luís, Dutra e Getúlio.

A arte revolucionária, que está à frente de sua época, e portanto com um público reduzidíssimo, não pode avançar e contribuir para a cultura nacional se for colocada à mercê do mercado. Não são os empresários e o público consumidor que hão de sustentar a nova e revolucionária produção artística, porque o retorno desse tipo de arte é de longo prazo.

Evidentemente, apenas o poder público ou, enfim, o Estado, pode ter consciência do problema e, assim, dispor-se a resolvê-lo. Infelizmente o neoliberalismo das políticas governamentais faz com que todas as rédeas do futuro brasileiro sejam entregues à iniciativa privada. Ao bandido são entregues o ouro, o lucro, a segurança nacional, o poder decisório, o controle da informação e da comunicação e também o recriado poder de censura.

A Lei do Mecenato nada mais faz do que privatizar o apoio à cultura. Esse, que constitucionalmente é dever do Estado, é passado às mãos do empresário usurpador. Teorizações e desenvolvimentos desse raciocínio certamente nos levariam a concluir que a Lei Rouanet e seus filhotes são inconstitucionais.

O governo resolve praticar a "renúncia fiscal". Que vem a ser isso? Praticamente, o governo demonstra não confiar em si mesmo, porque ao renunciar a uma percentagem ou à totalidade do imposto o governo está, no fundo, dizendo ao empresário: "— Não vou arrecadar seu tributo. Fique com a grana, porque se você me a entregar vou gastá-la em bobagens, não a aplicando em cultura. Vários níveis de meus escalões poderão até mesmo embolsá-la. Portanto, aplique você mesmo em cultura, diretamente, porque eu não confio em mim!"

Há alguns anos o Ministério da Cultura divulgou, através de sua Secretaria de Apoio à Cultura, os objetivos da Medida Provisória que pretendeu dar às Artes Cênicas, à Ópera e à Música Erudita os mesmos benefícios que vinham sendo dados apenas aos cineastas (sempre eles!). Mas foram feitas, nos esclarecimentos governamentais, sérias restrições em nome e em defesa do "interesse público" (sic). Aquele que usa a expressão "interesse público" está sempre a se referir ao interesse dos cidadãos seus contemporâneos. Assim, o "interesse público" a que se referia o MinC, é o interesse do "público" de hoje, do povo de hoje. Em outras palavras, quando os detentores do "poder público" dizem estar defendendo o interesse público, ele está querendo dizer que defende os interesses daquela sociedade contemporânea, cujos membros eles representam ou dizem representar. Mas, muita coisa que é de "interesse público" para a sociedade de hoje, é desinteressante, e muitas vezes prejudicial, para a sociedade de amanhã: a sociedade que vai ser formada pelos filhos e netos dos cidadãos da sociedade de hoje. Antagonicamente, muita coisa que é de "desinteresse público" para a sociedade de hoje é de "interesse público" para a sociedade de amanhã.

O Estado precisa olhar por seus artistas inovadores, brilhantes e fecundos, apoiando-os incondicionalmente, porque há de ser ele, sempre, o único ator do cenário nacional que poderá agir sem interesses imediatistas. Apenas o poder público, e nunca o poder privado, poderá ter condições para o vislumbre magnânimo que resulta em investimentos de risco para possíveis – e não assegurados – retornos imateriais no futuro longínqüo.

É o governo, para que se cumpra o dever do Estado, que deve direta e especificamente apoiar a cultura. Se a questão estratégica for considerada em sua plenitude, será fácil ter-se consciência de que a Cultura e as Artes, melhor que o Comércio, a Indústria e as Forças Armadas, são os fatores que provocam a admiração e o respeito internacional. É justamente a intensidade desse apoio às Artes que irá determinar, em termos políticos, a opção entre hegemonia, aliança ou submissão.

Por JORGE ANTUNES (Compositor, maestro, professor titular da Universidade de Brasília, membro da Academia Brasileira de Música, Pesquisador do CNPq e Presidente da Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica).

REFERÊNCIA: ANTUNES, Jorge. A privatização do apoio à cultura. Revista Espaço Acadêmico, n. 54, nov. 2005. Disponível em: Acesso em: 15 out. 2010.

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