CORRESPONSABILIDADE E ÉTICA NOS PROCESSOS DE FORMAÇÃO EM DANÇA
Fragmento de artigo que será publicado na íntegra no livro comemorativo dos 10 anos da Bienal Internacional de Fortaleza.
Profa. Dra. Isabel Marques
Instituto Caleidos/SP
Graduada em Pedagogia pela USP, Mestre em Dança pelo Laban Centre for Movement and Dance, Londres, doutora em Educação pela USP. Diretora do Caleidos Cia. de Dança (SP) e do Instituto Caleidos (SP). Autora dos livros “Ensino de dança hoje”, “Dançando na escola” e “Linguagem da dança: arte e ensino”. Contato: www.caleidos.com.br, caleidos@caleidos.com.br. Agradeço a Fábio Brazil pela leitura crítica deste texto.
“Quanto mais me capacito como profissional,
quanto mais sistematizo minhas experiências,
quanto mais me utilizo do patrimônio cultural,
que é patrimônio de todos e ao qual todos devem servir,
mais aumenta minha responsabilidade como os homens”
(Paulo Freire)
Ética: uma introdução
A criação de redes de relações corresponsáveis pela formação em dança perpassa pelo desejo e pela necessidade de compreender a tessitura dessas redes como uma questão que se volta para o bem comum, para o bem coletivo e não para processos lineares e unilaterais. A formação das redes de relações, portanto, perpassa necessariamente pela ética.
As atitudes éticas enfatizam justamente o respeito ao outro (RIOS, 1995), a reflexão e a busca de sentido nas ações dentro de um contexto livre e de boa fé. A ética permite estabelecer diálogos com a dignidade humana na efetivação da cidadania democrática, pois trabalha com princípios de respeito, justiça, solidariedade e integridade (ibid, 2008). Redes de formação em dança tecidas com ética viabilizariam também a tessitura de redes de relações sociais em que corresponsabilidades são assumidas e caminhos escolhidos coletivamente.
Além da postura ética, Paulo Freire (2001) sugere que a responsabilidade do educador se traduz pela competência e pela coerência que se leem na presença do educador com o mundo e não simplesmente em sua presença no mundo. A responsabilidade, defende o autor, diz respeito a decidir e não simplesmente a seguir correntes de pensamento e comportamento. A responsabilidade no campo da educação, continua, diz respeito à justiça social e à maneira como escolhemos ou não nos comprometermos com ela (FREIRE, 1982). Ações responsáveis são, acima de tudo, ações competentes, coerentes e éticas, enfatiza.
Entendo que “educadores somos todos nós que criamos e tecemos as redes de relações interpessoais, culturais e políticas que formam a sociedade em que vivemos” (MARQUES, 2010, p. 15). Assim, professores, artistas, pesquisadores, curadores, críticos, gestores públicos, produtores são todos educadores no campo da dança, são todos corresponsáveis pelos processos de educação, de formação em dança, cada qual em sua função específica: ao professor cabe especificamente o ensino e a aprendizagem, ao artista a criação e o diálogo, ao gestor a elaboração e execução projetos e políticas públicas etc.
A competência, a coerência e a ética, no entanto, não diz respeito a funções e/ou especificidades de trabalho de cada um dos profissionais da dança: competência, coerência e ética configuram-se como uma dimensão no universo das relações dos processos de formação sem as quais a própria rede de relações não se tece. A competência diz respeito ao conhecimento, ao saber, às redes de conteúdos do universo da dança. A coerência implica as relações teoria/prática, as relações entre o que se diz, prega e pesquisa e atitudes e comportamentos cotidianos. A ética reflete sobre os valores que comandam as ações e as fazem ir além do nível imediato da situação (RIOS, 2008).
Atitudes competentes, coerentes e éticas dizem respeito ao compromisso de cada profissional na realização dos direitos e deveres dos coletivos de uma sociedade. Esse compromisso, assim como defende Paulo Freire (1982), está diretamente ligado ao conhecimento e à responsabilidade que assumimos frente ao conhecimento universal (que pertence a todos) – conhecimento a que temos direito e que podemos/devemos (des/re)construir nos processos de formação em dança.
A sonegação de conhecimento, o plágio, a destruição e a depreciação do trabalho do outro, a falta de diálogo com alunos, intérpretes e público, a apropriação privada dos bens públicos (convênios em teatros, museus, bibliotecas e no gerenciamento de leis) são exemplos constantes de falta de compromisso com o conhecimento. São exemplos, infelizmente corriqueiros, de falta de ética com o outro, com uma convivência digna, respeitosa e solidária em sociedade; são exemplos de falta de compromisso e de responsabilidade – portanto, de ética – na construção das redes de formação, de educação permanente e continuada na área de dança.
Processos de formação em dança tecidos com competência (conhecimento), coerência (redes de relações) e ética (apreço e trabalho pelo bem comum) diferem-se radicalmente dos processos de formação regidos pelo jogo de culpas, pelo poder unilateral, pelas relações lineares e pelas vaidades acadêmicas.
Processos de formação em dança que tecem redes de relações entre o conhecimento, as dinâmicas sociais e o bem comum possivelmente não forjarão fôrmas e/ou enformarão pessoas. Ao contrário, ao delinearmos formas múltiplas, abertas e interrelacionadas de convivência e (des/re)construção de conhecimento poderemos contribuir para processos de formação em dança corresponsáveis e éticos, justos e voltados para o bem comum. Poderemos contribuir para a construção da cidadania democrática.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
__________. Política e educação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MARQUES, Isabel. Linguagem da dança: arte e ensino. São Paulo: Digitexto, 2010.
RIOS, Terezinha. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1995.
__________. A presença da filosofia e da ética no contexto profissional. Revista Brasileira de Comunicação e Relações Públicas/ECA-USP, v. 5, n. 8, p. 78-88, 2008.
VEIGA, Ilma Passos. A aventura de formar professores. São Paulo: Papirus, 2009.
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